
“Não vale a pena esconder, a lampreia vem de França”
A época é de lampreia, mas ela chega ao prato vinda de longe, admite Francisco Pinto, pescador e proprietário de um restaurante junto à barragem de Belver, no distrito de Santarém. Longe vão os tempos de fartura do apreciado peixe na região
Há um mês que Francisco Pinto sai uma ou duas vezes por semana para pescar lampreia e volta com os baldes vazios. No restaurante familiar, que gere com a sogra e a mulher, em Ortiga, à beira da barragem de Belver, distrito de Santarém, a lampreia que se serve por estes dias é praticamente toda francesa. “60% da lampreia que usamos é de fora, de França. Lá se arranja uma ou outra da Figueira da Foz, aqui do Tejo pouquíssima coisa, meia dúzia delas”. E no seu barco ainda não apanhou nenhuma. “Ainda não me estreei”, diz, sorrindo, enquanto encolhe os ombros.
No restaurante A Lena, fundado pela sogra de Francisco há perto de 50 anos, a sala está cheia e fumega com os odores das travessas e das vozes de grupos de amigos do tacho. É quarta-feira e mesmo assim há peregrinação à lampreia. Num dos grupos estão clientes que ali vão desde o primeiro dia. Há décadas que não dispensam a lampreia confecionada pela Lena da Barragem, como também é conhecida. No início o restaurante era mais pequeno, e a esplanada feita na sombra das árvores. A estrutura cresceu e ali acorre gente de todo o país, alguns chegam no comboio que vai de Lisboa e para às 12.25 no apeadeiro da Barragem de Belver, mesmo ao lado.
A ‘Ti Lena’ encaminha-nos para a mesa no meio da sala e logo vai dizendo que quem sabe de lampreia é o senhor que, na mesa do lado, se banqueteia com a iguaria que leva a fama da casa aos quatro cantos do país: “Não vale a pena esconder, a lampreia vem de França”. Manuel Garcia, aquele homem grande que se debruça sobre o prato, promete, mal despache o repasto, contar-nos como as vai buscar a França e vende em Portugal, há 33 anos. No fundo estava ali a comer parte de uma lampreia que ele próprio trouxera da região de Bordéus. Toda a gente o conhece e mete conversa com ele. Manuel a todos responde, conta e escuta histórias, e é quase certo que faria negócio se lampreias tivesse para vender. “Sou a única pessoa a ter lampreia no país há mês e meio praticamente, mais ninguém tem”. Ligam-lhe do Minho, de Lisboa, do Porto, do Algarve, não tem mãos a medir.
Preparava-se para seguir para França no fim de semana para ir buscar lampreia. Só iria quando tivesse a segurança de as poder trazer em quantidade, para compensar a viagem no seu carro-viveiro. Tem fornecedores em Bordéus e no Vale do Loire, contactos antigos dos tempos em que ali foi emigrante. Já chegou a trazer às 500 por semana, agora dá-se por satisfeito se conseguir 150. Em França, na região de Bordéus, o governo impôs restrições à pesca em novembro para preservar a espécie, e isso também afeta toda a cadeia de valor. Seja como for, Manuel Garcia garante que “a lampreia não para nos viveiros”, e que em duas horas, ou menos, esgota o stock que traz em cada viagem.
“Estou a ser insultado por pessoas a quem não consigo entregar lampreia, só estou a entregar aos meus melhores clientes para que a casa deles não vá abaixo”, diz-nos este negociante de lampreia, que garante passar fatura e trabalhar com organismos franceses com alvará, tal como ele. A lampreia chega viva aos restaurantes, como A Lena, que acabara de assegurar “à rasca” as necessidades para os próximos dias – também ela insultada por alguns clientes quando diz o preço da dose (já lá vamos).
Manuel Garcia diz que a lampreia está a 50 euros o quilo, mas Francisco sabe de quem tenha dado 150 por uma lampreia comprada a um pescador no Rio Minho. “Estamos a voltar ao antigamente, em que a lampreia era para ricos. Quando comecei, o meu pai já era pescador e a lampreia era só para pessoas com poder de compra. Mas depois houve anos em que houve muitas e o preço baixou muito, era corriqueiro. Agora voltou ao antigamente”, diz Francisco Pinto.
Família de pescadores já vem do tempo das invasões francesas
Também Manuel Garcia tem a vida ligada ao rio. A sua família de pescadores nascidos na margem do Zêzere e do Nabão, vem de “antes do tempo das invasões francesas”. Manuel repete a história de como os seus tetravós queimaram os barcos, que eram o ganha-pão deles, para as tropas de Napoleão não passarem o rio e irem saquear Tomar. Apesar do gesto heroico, os familiares de Manuel não impediram o curso da história. Já Manuel teve de emigrar e viveu 25 anos em França, onde trabalhou no restauro de Monumentos Nacionais, como o Phare de Cordouan, onde trabalhou nove anos. Diz o nome no seu melhor sotaque francês. “Veja lá na internet, é o mais bonito farol do mundo”.
Aos 72 anos, negoceia em lampreia e continua a ir ao rio, tentar a sua sorte, sem sucesso. Ninguém sabe exatamente o que se passa, o ano passado atribuiu-se a escassez à seca, mas este ano o rio corre gordo. Francisco atribui a “fatura” do que estão a pagar à poluição do Tejo. Há sete anos, foi construída uma ETAR, mas apesar de a água estar “espetacular, sem sabores nem cheiros”, o mal está feito: “O que se estragou em dois anos, demora uma década ou duas ou três a recuperar. É preciso intervenção humana, as espécies que se perderam deviam ser reintroduzidas e não se está a fazer nada nesse sentido”. Além disso, foram criadas zonas de reserva de lampreia, que seriam suficientes caso todos as respeitassem. Mas isso não acontece, dizem-nos estes e outros pescadores. Falta fiscalização.
“Enquanto houver uma lampreia, não há ninguém que a queira proteger”
“Vêm proibir a pesca durante dois meses para que haja mais peixe para a desova. Aqui no Tejo, enquanto houver uma lampreia, não há ninguém que a queira proteger. Os clandestinos vão em maio, junho, e julho e apanham na mesma. É um crime!”, diz Manuel. Além de ser negociante e pescador, vê-se que tem um fascínio pela lampreia: “A lampreia é única, não pode haver falcatrua. Atualmente, na Terra, deve ser o único bichinho genuíno. Isto é uma aventura na Terra com mais de 400 milhões de anos. Dinossauros já foram e a lampreia ainda cá está”.
O ciclo de vida das lampreias, de sete a nove anos, não pode ter interferência do homem: desovam no rio, e ficam ali cerca de dois anos. Depois, “mais fininhas que um lápis, elas vão para o mar para lá passarem mais cinco a seis anos de vida, até estarem com um quilo ou dois quilos, alimentando-se do sangue dos outros peixes, pouco importa se é tubarões, se é baleias, se é sáveis, se é salmões”. Depois voltam a subir o rio. Ou voltariam.
Tal como Francisco e Manuel, muitos pescadores que por esta altura palmilham o Tejo e seus afluentes à procura da lampreia voltam sem boas notícias. Na Aldeia do Peixe, em Benavente, toda a toponímia é sugestiva. A Rua dos Pescadores desemboca no rio Sorraia cruzando a Estrada das Enguias. O caminho termina numa ponta da aldeia avieira, com o alcatrão a dar lugar a areão numa pequena enseada. O sol retoca as cores do rio e da Vedeta do Sorraia, uma pequena embarcação de pesca presa junto à margem. Ainda se veem alguns destes barcos, as bateiras, nos rios da região. Vêm de pais para filhos e conservam os sinais de um passado ligado ao rio, embora agora com uma história bem diferente. Se antes se vivia da pesca e estes barcos eram também casa, e o sítio onde nasciam e se criavam os filhos, hoje são uma memória do passado, conservada pelo carinho dos descendentes.
É o caso de João Ferreira, que avistamos no meio do rio. Ali o Sorraia aconchega-se entre as duas margens, de modo que, depois do nosso aceno, com dois ou três impulsos de uma vara, o pescador faz deslizar a pequena embarcação até esta margem. Num balde preto traz um fundo de enguias, numa caixa meia dúzia de barbos. Enguias nem vê-las. “O Sorraia está uma vergonha, está fechado com jacintos. Dantes, íamos até ao Couço de barco, agora andamos só aqui neste pedaço”, diz, apontado o serpentear do rio para a esquerda e para a direita, talvez uns 200 metros entre duas curvas da água. No tempo dos avós era a fartura de sável e lampreia. O pai seguiu a profissão, mas João, 65 anos, já teve de se dedicar à construção civil para arranjar sustento. Agora pesca para si, e nos dias em que o rio é generoso vende qualquer coisa.
Mais a sul, noutra aldeia avieira à beira de um Tejo engalfinhado de água e de vento, não há pescadores na faina. Se na Aldeia do Peixe a alvenaria apagou os sinais das construções em madeira originais, em Caneiras, às portas de Santarém, ainda há muitas casas em madeira, embora o tijolo já marque a paisagem. Ali ainda há quem pesque, mas o pequeno núcleo urbano, agora, junta residentes e quem ali tenha casa de férias e fim de semana. José Vieira é outro herdeiro de uma bateira, a que acoplou um motor para poder navegar no Tejo. A embarcação era dos avós, mas eles nunca nela pescaram robalo, peixe de mar que há cinco anos começou a assomar ao Tejo, em Santarém, por causa da elevada salinização das águas.
Os avós de José também nunca pescaram um siluro, muito menos com 43 quilos, como o que o neto conta ter apanhado. Este megapredador é outra ameaça à lampreia. Já Francisco, em Belver, nos falara deste peixe-gato, que também deu cabo das bogas. Vai pescando lúcios e barbos, que hão de chegar ao prato no restaurante onde a Ti Lena e a filha Fátima cozinham. Mas não há nada como a lampreia. “Já me insultaram e já me desligaram o telefone quando disse o preço”, conta a Lena da Barragem. A dose de lampreia, com entrada sobremesa e café são 40 euros. “As pessoas têm de cá vir de propósito e temos de ter isso em conta, e lucrar praticamente zero”, diz Francisco. Mais dia menos dia, volta ao rio. “Se apanharmos alguma, a primeira comemo-la nós”.